Naquela noite, os cães do vizinho, que estava viajando, uivavam sem parar. Minha mãe me disse para eu virar os chinelos ao contrário, debaixo da cama. Mas de nada adiantou. Depois que meus pais foram dormir, eu fiquei assistindo televisão para ver se o sono chegava. Estava armando tempestade, e o vento levantava as sais da cortina. Eu não gosto de tempestades. Nunca me senti confortável quando elas caem. Isto, desde que um raio quase me atingiu, enquanto eu nadava em um rio. Eu ainda era criança. O raio caiu bem na beirinha. Meus amigos disseram que se ele tivesse caído na água, eu teria morrido. Será? Agora o sininho de vento da varanda estava tocando sem parar, acompanhado pelo fúnebre uivar dos cães do vizinho. Desvirei os chinelos e virei-os de novo, mas eles continuaram uivando. Sem sono e com sede, fui até a cozinha tomar um copo de suco. Ao passar pelo quarto dos meus pais, vi que eles dormiam profundamente. Estava à pia, de pé, olhando pela janela, os raios iluminando o quintal dos fundos como se fosse dia. Mas era noite. Foi quando vi uma coisa estranha, desenhada pelo clarão de um relâmpago, sobre o muro que separava nosso quintal do quintal dos vizinhos. Não sei dizer o que era, só que era grande; parecia um homem, de pé sobre o muro, mas sua posição encurvada e a grande proporção de suas costas, ou talvez, algo de errado com a maneira como ele se equilibrava sem dificuldades no alto do muro, me chamou a atenção. Percebi que aquilo não era humano. Um frio percorreu-me a espinha. Mais um relâmpago, e dei com a coisa olhando fixamente para mim. Os olhos dela brilhavam. Fechei as cortinas da janela depressa. Agora, o coração dava saltos dentro do peito, fazendo doer a garganta. O medo. Um medo crescente. Ouvi um ruído de porta rangendo, e percebi que a porta da cozinha estava destrancada, e o vento a abrira. Papai esquecera de trancá-la. Engoli em seco. A distância que me afastava da porta era de seis passos. Seis passos exatos, eu sabia muito bem. Mas o medo congelava-me. Eu sabia que precisava fechar a porta, antes que a coisa entrasse. Sabia que estávamos todos em perigo. Com um enorme esforço, levantei meus pesados pés e corri até a porta, para fechá-la. Naquele momento, a luz acabou, e tropecei no banquinho que alguém tinha esquecido no caminho. Caí pesadamente, sem conseguir chegar até a porta. A ventania escancarou-a de vez. Vi, enquanto me levantava, o exato momento em que a coisa corria na direção da porta. Num reflexo de pavor, bati-a fortemente, passando a tranca. Algo bateu na porta com força. Um rugido de dor do lado de fora. Nisso, meus pais desceram as escadas, segurando velas. Perguntaram que barulho era aquele, e tentei explicar-lhes rapidamente o que estava acontecendo. Mamãe pediu-me que eu me acalmasse, dando-me um copo de água com açúcar, e dizendo que com certeza, eu vira um macaco, ou quem sabe, algum ladrão. Os cães uivaram mais alto. Depois, um ganido , seguido de outros ganidos, e a tempestade caiu. Papai queria ir lá fora ver o que estava acontecendo com os cães do vizinho, pois se responsabilizara por eles na ausência dele, mas eu implorei-lhe que não abrisse a porta. Contrariado, ele decidiu me ouvir. A tempestade caiu em rajadas de fúria, e nós resolvemos voltar para a cama. Combinamos de trancar as janelas e as portas dos quartos, e não fui dormir antes de meus pais prometerem que o fariam. Ainda ouvi, quando me encaminhava para o meu quarto, mamãe dizer que eu deveria ter tido um sonho ruim. Na manhã seguinte, quando papai foi até a casa do vizinho alimentar os cães, encontrou apenas as coleiras vazias. Até hoje, ninguém ficou sabendo o que aconteceu com eles, mas toda vez que uma tempestade se aproxima, ouvimos os seus uivos em algum lugar distante; no começo, papai ainda tentou acompanhar o som, a fim de achar os cães, mas toda vez que ele estava se aproximando do local de onde os uivos vinham, eles mudavam de lugar.