Leonora vivia sozinha em uma dessas velhas casas, cujas janelas, grandes e compridas, dão diretamente para a calçada. A pintura das paredes estava desbotada, e caía em placas aqui e ali. A casa ficava quase espremida entre dois velhos sobrados, e quase não recebia a luz do sol.
Leonora não era uma moça feia, mas também estava longe de poder ser encaixada nos padrões da beleza... na verdade, havia algo intrigante sobre Leonora e seu rosto: ela era totalmente insípida! Olhos verde-pistache sem expressão, emoldurados por sobrancelhas arredondadas e finas, cabelos crespos e sem-cor, um nariz insignificantemente pequeno e sem-personalidade, os lábios caídos, o corpo sem curvas. Leonora era uma daquelas pessoas que poderia passar horas à janela, ou em um salão de festas cheio de pessoas, sem que alguém sequer desse conta de sua presença.
Apesar de já passar dos trinta anos, ela ainda alimentava muitos sonhos. Pensando melhor, os sonhos eram a única razão para que ela suportasse sua existência totalmente sem sentido. Por isso, ela tornara-se uma especialista no sonhar. Sonhava tanto, que chegava a confundir a realidade e o mundo imaginário. Assim, criava personagens em sua mente que acabavam confundindo-se à realidade, e às vezes contava às pessoas estórias sobre eles, mas quem a conhecia há tantos anos, sabia que aquelas pessoas só existiam na mente de Leonora, pois ela jamais recebia visitas.
Um dia, alguém sugeriu - apenas por gentileza - que ela escrevesse sobre aquelas personagens, como em um diário. Leonora achou a idéia um tanto estranha, mas naquela noite, não dormiu. Pensou, pensou, considerou... e decidiu que, daquela forma, poderia tornar ainda mais concreta, a existência de seus amigos imaginários- prende-los-ia em folhas de papel!
Leonora tinha hábito de ir à igreja todos os dias, e auxiliar Padre Pedro durante as cerimônias. Mas naquela manhã, ela estava tão ocupada começando a escrever suas histórias, que a hora passou e Leonora esqueceu-se de ir à missa! Três dias depois, como a ausência da moça já começasse a preocupar Padre Pedro, ele decidiu fazer-lhe uma visita. Chegando lá, ela contou-lhe sobre seu novo projeto, do qual ele fez de tudo para dissuadi-la, dizendo que a imaginação demasiadamente fértil era uma das artimanhas usadas pelo demônio, mas Leonora não ouviu uma só palavra do que ele disse.
Quase em transe, serviu-lhe uma xícara de chá, e dez minutos após sua chegada, ela levou-o até a porta. Ele lembrou-a de que haveria um casamento naquele sábado - sabia o quanto ela adorava casamentos, e que com certeza, a cerimônia a levaria de volta à igreja . Mas Leonora não compareceu. Nem mesmo para recolher os grãos de arroz que caíam nas escadas da igreja, e que ela colocava em uma jarra junto à porta de entrada de sua casa, acreditando que eles lhe trariam sorte e a ajudariam a encontrar um marido.
Ficou em sua casa, escrevendo o dia todo, e às vezes, varando a noite. Só parava quando a fome fazia com que seu estômago doesse, ou o sono lhe roubava toda a concentração.
Quando se cansava de escrever, Leonora ficava à janela. Era lá que ela recolhia a maioria de seus personagens.
Um dia, viu quando um caminhão de mudanças estacionou junto ao prédio em frente à sua casa. Um belo moço supervisionava a mudança, orientando os carregadores. Imediatamente, Leonora ficou fascinada por ele, e incluiu-o como personagem principal de sua história.
Desde que o moço tornara-se seu vizinho, Leonora passou a ficar muito tempo à janela, esperando que ele passasse, o que acontecia pelo menos quatro vezes ao dia durante a semana, e duas nos finais de semana. Mas apesar da insistência da moça, que passou a maquiar-se e pentear-se exageradamente, ele jamais a notava. Uma vez, ela tossiu tão alto, que ele olhou em sua direção. Ela sorriu-lhe timidamente, ele cumprimentou-a com um leve aceno de cabeça, e seguiu seu caminho.
Aquilo foi o suficiente para que a moça criasse as mais mirabolantes fantasias sobre ele. Quando os vizinhos passavam por sua janela, ela às vezes apontava para a janela do apartamento do moço, e dizia a eles que em breve, caser-se-ia com o morador do prédio em frente, e que eles iriam morar ali.
As pessoas balançavam a cabeça, com pena de Leonora, e seguiam seu caminho.
Após um mês, o rapaz que passava todos os dias por Leonora e apenas a cumprimentava, conheceu outra moça. Numa bela manhã de sol, Leonora estava em seu posto costumeiro, quando viu o casal passar de mãos dadas, e entrar no prédio. Ela ficou olhando a cena, totalmente incrédula: ele a estava traindo! Quem seria aquela, que o estava roubando dela? Um estranho sentimento tomou conta da moça, queimando-a por dentro. Ela não sabia o que fazer, pois nunca em sua vida sentira-se daquela maneira.
Dias se passaram, e ela perdeu totalmente a vontade de escrever suas histórias. Estava angustiada, pois todos os dias, ela presenciava a mesma cena: seu grande amor e a 'outra', passando de mãos dadas, sorridentes e felizes, sob sua janela. Ele nem sequer a cumprimentava mais!
Resolveu ir à igreja, onde confessou tudo a Padre Pedro. Contou-lhe de seu amor platônico pelo moço, das histórias que escrevia, e da cena perturbadora que acabara de presenciar. Ele deixou que ela chorasse e aliviasse seu coração, pois para ele, tudo aquilo não passava de mais um dos delírios da moça. Quando sentiu que ela estava mais calma, disse-lhe: "Minha filha, você está afastada da igreja, e isso não é bom. Olhe, no próximo sábado haverá um casamento, e quero que você esteja presente. Tenho certeza que você se sentirá bem novamente! Lembra-se do quanto você sempre adorou as cerimônias de núpcias? E esta promete ser muito especial..."
Dizendo isto, Padre Pedro mandou-lhe rezar algumas Ave-Marias, e depois de obedecer ao padrer, Leonora voltou para casa.
No sábado seguinte, ainda abalada por todos os acontecimentos dos últimos dias, Leonora vestiu seu velho vestido cor-de-rosa bebê e foi assistir à cerimônia. Padre Pedro sempre deixava que ela ficasse em um cantinho do altar, de onde podia ver tudo sem ser vista, e ela sentou-se em sua habitual cadeirinha, esperando.
Mal pôde conter sua surprêsa quando viu que o noivo que se encaminhava para o altar, a fim de receber, mais tarde, a sua futura esposa, era nada mais, nada menos, que o grande amor de sua vida!
Em sua cabeça, pensou: "Mas então é isso! Padre Pedro quis fazer-me uma surprêsa! Ele vai casar-se comigo!!!"
Saiu detrás das cortinas, e nem percebeu os comentários confusos e os muitos "OooHHs" escandalizados, quando ela, aproximando-se do rapaz atônito, encaixou seu braço no dele. Em seu rosto, um sorriso de delírio.
Padre Pedro, atraído pelo alarido, veio da sacristia, onde ainda estava arrumando-se para a cerimônia, e deparou com a absurda cena. Pacientemente, tentou poupar Leonora de ainda maior humilhação, tentando retirá-la do altar, onde o rapaz, sem desejar ser rude, ainda estava de braços dados a ela. Ela teve que ser afastada à força, quase arrancada do altar.
Depois disso, Padre Pedro foi obrigado a trancá-la em um quartinho nos fundos da igreja, até que a cerimônia terminasse.
Foi lá que ela morreu.
Padre Pedro encontrou-a caída no chão, um estranho sorriso no rosto, e, pela primeira vez, notou uma expressão de alegria - embora ensandecida - em seus olhos.
Quando o senhorio foi até a casa de Leonora, a fim de esvaziá-la para o próximo inquilino, Padre Pedro resolveu ir também. HAvia alguns poucos móveis que poderiam ser doados à caridade. Notou que todos os casacos e blusas de Leonora tinham os cotovelos muito gastos, das horas que ela passara à janela, sonhando acordada. Quando lhe perguntaram o que fazer dos vários cadernos escritos à mão que estavam nas gavetas da cômoda, ele apenas respondeu: "Queime-os todos. Eles representam a ruína e morte de uma boa alma cristã."