Os gatos foram chegando um a um, logo após a morte do marido. Ela ainda era nova - sessenta anos- já que casara-se com um homem bem mais velho do que ela. Mas voltando aos gatos...
Bem, um dia, ela achou um filhotinho na rua, e levou-o para casa. Algum tempo depois, descobriu que o filhotinho era uma 'menina,' que engravidou e deu à luz seis gatinhos, antes que ela pudesse castrá-la. Os seis gatinhos - castrados - trouxeram alguns amigos, que iam chegando devagar, caminhando pelo muro nos primeiros dias, fitando-a com seus olhos de bolinhas de gude, até que ela, comovida, oferecia-lhes algo para comer, e deixando a porta da cozinha aberta, eles entravam, acomodando-se nas cadeiras, almofadas e tapetes.
Na mesma época, um corvo entrou pela janela enquanto ela tomava seu café da manhã. Não parecia amedrontado, e ambos sentiram-se imediatamente à vontade na presença um do outro. No início, ela ficou preocupada com a reação dos gatos quanto a ave, mas todos integraram-se perfeitamente. Não houve nenhuma tentativa, por parte dos felinos, de atacar a ave, que convivia muito bem com eles, ao ponto de comerem todos juntos.
No início, ela achou ruim; afinal, tinha que usar o aspirador de pó pelo menos duas vezes ao dia, para que a casa ficasse relativamente limpa. Depois, os pelos e penas passaram a não incomodá-la tanto, e ela deixou o aspirador de pó para ser usado uma, talvez duas vezes por semana. As visitas, irritadas com a presença dos gatos e da ave, que não era muito gentil com as visitas, foram escasseando, até pararem por completo; tagarelavam entre si, dizendo que ela tinha ficado maluca; onde já se viu, preferir a companhia dos gatos e daquela ave agourenta!
Mas a transformação começou mesmo, a partir de seu sexagésmo segundo aniversário. Um dia, ela acordou, e deparou com uma verruga na ponta do nariz. O médico disse que não era nada, e perguntou-lhe se gostaria de removê-la. Ela hesitou antes de responder. Apesar da estranheza da situação, ela não se sentia incomodada; pelo contrário! Agora que descobrira que não era nada grave, começou a gostar do novo detalhe em seu rosto. Foi até o espelho, olhou-se e decidiu: "Se essa coisa nasceu aí, é porque deve ficar aí."
Na manhã seguinte, ao pegar a vassoura a fim de varrer algumas migalhas de pão no chão da cozinha, percebeu que ela estava extremamente leve. Espantada, largou-a de repente, e a vassoura, ao invés de cair, flutuou. Boquiaberta, ela andou em volta da vassoura, que parecia ter alguma forma de inteligência e dialogar com ela. Em cima da pia, um gato preto e lustroso - Mefistófelis, seu preferido - olhava-a com seus olhos verdes e penetrantes.
Ela dobrou a dose do tranquilizante e foi dormir mais cedo, pensando que estava enlouquecendo.
Acordou de madrugada, com alguma coisa cutucando-lhe as costelas. Abriu os olhos, pensando ser um dos gatos, mas sentou-se na cama, assustada, quando viu que era a vassoura, que estava de pé ao lado da cama.
Fascinada, a velha senhora levantou-se, e foi naquele momento que a vassoura deu um giro no ar, enfiando-se no meio das suas pernas. Aos berros, ela saiu voando pela janela do segundo andar, em direção a lua, tão agarrada ao cabo da vassoura, que os nós dos dedos doíam.. mas quando o susto passou, ela percebeu que gostava daquilo. Era divertido! Há tempos não se sentia tão bem e tão viva!
Passou voando pelos telhados das casas, espantando os gatos dos becos, fazendo os cães uivarem, penetrando nas nuvens... e finalmente, antes do amanhecer, a vassoura deixou-a em seu quarto, voltando para o armário da área de serviço. Ela foi dormir, e quando despertou novamente, viu que alguém tinha limpado a casa, e havia comida fresca no fogão. A mesa do café da manhã tinha sido posta com a sua melhor louça, e o cheirinho do café envolvia toda a casa.
Desejou uma xícara, e estupefata, viu quando o bule flutuou sobre a mesa, servindo-a, sem derramar uma só gota. Ao mesmo tempo, ouviu o ruído do cortador de grama no jardim, e quando olhou pela janela da cozinha, viu que ele estava funcionando sozinho. Os gatos, alimentados, dormiam pela casa, e não havia um só pelo em seus sofás, tapetes e almofadas!
O corvo, pousado à janela, parecia divertido com a situação.
Ela estava gostando daquilo... nem se importou quando, ao passar pelo espelho do corredor, percebeu que a verruga na ponta do nariz (que tornara-se adunco) tinha crescido, e que suas costas estavam um pouco encurvadas. Adorou as unhas pontudas e os cabelos lisos e negros - outrora grisalhos e encaracolados.
Ao sair para dar uma volta, percebeu que as crianças a apontavam na rua. As menores escondiam-se atrás das saias das mães, que constrangidas pelo comportamento das crianças, ralhavam com elas.
Um novo sentimento, antes inexistente, começava a tomar conta de sua alma; um certo egoísmo, um pouquinho de maldade, talvez... ela, que sempre fora tão boa, tão condescendente, tão correta e solidária, agora, pensava que a existência valia mais a pena quando vista sob o prisma de um viver para si, e que um pouco de egoísmo deixava tudo mais excitante. Assim, ao invés de fazer a costumeira doação às obras da igreja, ela comprou roupas novas: vestidos negros e esvoaçantes, cujas saias e rendas ficariam lindas balançando ao vento, em seus voos nas noites de luar.
Tornou-se uma lenda.
As crianças apostavam, em seus ritos de passagem, quem conseguiria chegar até a casa da bruxa (como ela passou a ser conhecida) e tocar a campainha, ou entrar no jardim e colher um galho de sabugueiro sem ser visto.
Algumas pessoas até podiam zombar dela pelas costas, mas ninguém se atrevia a desafiá-la. Respeitavam-na, dando-lhe passagem, e para seu alívio, deixaram de tratá-la como se fosse uma criança, usando aquele irritante tom de voz e dizendo coisas estúpidas como "Tá bonitinha hoje! vai passear?" Ela detestava ser tratada daquele modo!
Ela descobriu que ser uma bruxa era divertido, além de muito útil, afinal de contas...