Lizy vivia nas páginas frágeis e amareladas de um livro muito antigo. Um romance que não era lido há muito tempo, e que ficava guardado dentro de um baú, debaixo de algumas roupas antigas. Ela passava os dias sem contá-los. Não tinha noção do tempo, pois na página onde vivia, não havia relógios, e o tempo não passava. Os dias e noites se sucediam, a chuva caía, o sol brilhava, mas nada acompanhava a mudança dos dias. Parecia que eles se moviam em círculos, e depois de um certo tempo (usarei a palavra ‘tempo’ por falta de alternativa, mas lembre-se de que o tempo não existe por ali), já era possível para Lizy prever se faria sol ou se choveria.
Como companhia, ela tinha alguns coelhos, pássaros, esquilos e joaninhas. Havia também, na beirada da página, o passo estanque de um príncipe que só chegaria na próxima página; mas como ninguém mais lia o livro – que havia sido esquecido, aberto na página onde Lizy vivia – a história ficava parada. Ela própria, de tanto ficar na mesma página, há muito esquecera-se de sua história, e do desfecho final. Sabia que havia um príncipe; afinal, seu passo estava ali: ela podia ver o rico sapato de couro marrom e fivela dourada reluzente.
Lizy passava o tempo deitada na grama, olhando a claridade dos raios de sol que passavam entre as folhas das árvores. Às vezes, brincava com seus amiguinhos. Também gostava de deitar-se no chão, deixando os olhos ao nível do gramado, para ver as gotinhas de orvalho que se formavam e brilhavam como joias. À noite, seus olhos viajavam pelas miríades de estrelas que se ofereciam no imenso céu aveludado – os céus dos contos de fada (sim, era um conto de fadas) são sempre muito lindos, principalmente, à noite. Também sonhava à luz do luar com o dia em que aquele passo entre páginas finalmente se moveria, e ela seria resgatada de seu maravilhoso mundo estanque.
Acho que passou-se mais de um século, até que finalmente, alguém, de uma cidade moderna, entrou naquele sótão. A pessoa caminhou com cuidado sobre as madeiras frágeis do piso, desviando-se de algumas teias de aranha cujas habitantes há muito tinham deixado de existir, e olhou em volta. Acabara de herdar aquela antiga propriedade, e estava explorando o local, antes de decidir o que fazer com ela – reformá-la ou vendê-la para uma companhia imobiliária.
A pessoa encantou-se ao descobrir, sob um pano empoeirado, um belíssimo espelho de cristal, cuja moldura de boa madeira antiga e lindamente entalhada estava em perfeito estado. Decidiu que, se ficasse com a casa, aquele espelho seria levado para os seus aposentos. Depois, abriu a pequena janela do sótão, que estava meio-emperrada, e fez com que a luz do sol entrasse, revelando as brilhantes partículas de poeira com uma luz amarelada de final de tarde. Foi aí que a pessoa enxergou o velho baú, e munida de curiosidade, foi até ele e o abriu.
Passou algum tempo examinando as roupas antiguíssimas, decidindo se poderiam valer alguma coisa para algum museu ou colecionador. Estavam em bom estado, apesar do tempo. Finalmente, chegou ao fundo do baú, e encontrou o livro onde Lizy morava. Pegou-o imediatamente, ainda aberto, e bateu a poeira levemente com a palma de uma das mãos, fechando-o.
Naquele exato momento, Lizy quase não podia conter-se de tanta felicidade! Finalmente, ao fechar o livro, a pessoa juntara todas as partes e personagens daquela história. Encantada, Lizy viu o pé do príncipe mover-se, e logo, ele apareceu diante dela, com toda a sua majestosa beleza. Imediatamente, ambos lembraram-se do início daquela história, e compreenderam que tinham sido escritos para permanecerem juntos. Deram-se as mãos, e acompanhados por todos os outros personagens, encaminharam-se para as páginas da outra metade do livro, onde um final feliz os aguardava. O tempo voltara a passar normalmente.
Enquanto isso, no mundo real, a pessoa virou o livro entre as mãos, e sem um segundo pensamento, jogou-o na pilha das coisas que estava separarando para serem queimadas na manhã seguinte.