Candy
Conto inspirado na canção "Candy", de Iggy Pop
“Beautiful, beautiful girl from the north...” – Iggy Pop - Candy
Nascida em 1990, ela recebeu o seu nome em homenagem a uma música de Iggy Pop que sua mãe, Patrícia, então com 15 anos, amava: Candy.
Seu rosto açucarado e rosado de bebê, no qual brilhavam duas pedrinhas azuis tão claras quanto as águas de uma límpida lagoa, a boquinha arredondada em carmim, o fino cabelo de um loiro quase branco: tudo fazia jus ao nome escolhido: Candy. Porque ela era doce. Desde cedo, Patrícia decidiu que ela apenas vestiria a menina com roupinhas em tons muito claros, em rosa, verde, branco ou azul. A menina dos tons pastel, das flores miúdas, das trancinhas nos cabelos. Pele branco-rosada. Unhas rosadas. Calcanhares tão finos e macios, que Patrícia gostaria que a pele de seu próprio rosto fosse como a deles.
Andy, o pai, tinha apenas dezessete anos quando ela nasceu. No início, achava ruim ter que deixar sua vida de garoto tão cedo, arranjando um emprego como garçom em um restaurante local e estudando à noite, enquanto Patrícia, sem o apoio da mãe, precisou largar os estudos para olhar a filha. Nos finais de semana, ele fazia biscates, limpando escritórios, lavando janelas, cortando gramados e pintando paredes. Mal dava para pagar o aluguel do sobradinho que tinham alugado em um bairro de periferia.
Dora, a mãe de Patrícia, uma enérgica e preconceituosa viúva de cinquenta e seis anos, vivia em uma bela casa uma vida muito confortável com a pensão deixada pelo marido; mas era Protestante fervorosa, e não aceitou quando a filha adolescente chegou em casa um dia e anunciou sua gravidez: o que suas amigas da igreja diriam? Propôs que Patrícia abortasse, mas a menina, acusando-a de hipócrita por professar uma religião que não seguia, negou-se a tirar a criança. A mãe então achou que seria melhor se mandasse Patrícia para algum lugar distante até o bebê (que seria dado para adoção) nascesse; mas novamente, Patrícia negou-se a fazer o que a mãe propusera. Ela teria seu bebê.
E por causa de sua decisão, a mãe expulsou-a de casa. Prestava alguma ajuda financeira, mas não queria mais por os olhos na filha. O dinheiro era depositado em uma conta bancária todo mês, evitando qualquer contato entre as duas. Nem mesmo quando Candy nasceu, a avó quis visitá-la – apesar do telefonema do pai da menina, avisando-a sobre a neta.
Assim seguiam as vidas interrompidas daqueles dois adolescentes, que davam espaço para que uma outra vida começasse.
Andy era de uma família destroçada e muito pobre, mas tinha tantos sonhos dentro dele que gostaria de realizar e dos quais precisou abrir mão em nome da filha, que não sabia mais quem ele era. Começou a usar drogas durante uma noite de sexta-feira, numa happy hour com amigos. No começo, era só curtição, mas em alguns meses, tornou-se viciado em cocaína. Perdeu o emprego, e a pequena família passou a viver apenas da pensão da mãe de Patrícia e dos biscates que Andy ainda conseguia fazer nos finais de semana – único período em que estava totalmente sóbrio, quando tinha trabalho. E ainda devia dinheiro a alguns traficantes, que passaram a rondar o apartamento e ameaçá-lo de morte. Assim, a fim de pagar suas dívidas, Andy passou a vender drogas. O dinheiro era bom, e a vida financeira do casal melhorou bastante, mas Patrícia vivia apavorada: não podia ouvir uma sirene que seu coração disparava. Se o marido fosse preso, do que ela e Candy viveriam? Tão estressada Patrícia estava diante da possibilidade de ter que ficar sozinha, que entrou em depressão.
Candy cresceu em um apartamento sujo e bagunçado, no qual ela era a única beleza. Logo, a juventude e o frescor de Patrícia deram lugar às olheiras profundas, ao cabelo loiro maltratado e despenteado, que tombava, oleosamente, sobre os ombros magros e encolhidos, às roupas largas e surradas. Andy ganhou peso, e também perdeu seus traços de juventude. Seu olhar era vazio e triste. Só se alegrava um pouco quando tinha Candy em seus braços.
A menininha crescia a olhos vistos, cada vez mais linda e admirada até mesmo pelos amigos drogados do casal. Aos cinco anos, Patrícia matriculou-a em uma escolinha local, e Candy adorou sua nova fase. As professoras se encantavam por aquela pequena beldade loira de olhos azuis e pele rosada, lamentando o estado andrajoso em que Patrícia mandava a filha à escola; passaram a presenteá-la com roupinhas novas, que Patrícia vestia na menina quando não havia mais roupas limpas.
“I’ve had a hole in my heart for so long…” – Iggy Pop – Candy
Andy perdera sua alma em algum lugar. Talvez estivesse enterrada no mesmo lugar onde, há cinco anos, enterrara seus sonhos. Mas uma coisa boa brotara daquela renúncia, e essa coisa era Candy. Sempre que chegava em casa, chapado e desesperançado, ele pegava a menininha no colo e ia brincar com ela. Patrícia já não se deitava com ele há muito tempo, pois ela perdera todo o apetite para o sexo, e a aparência de Andy dava-lhe náuseas. Apenas cuidava para que Candy não passasse fome ou adoecesse, mas sempre que olhava para a filha, pensava no que sua vida poderia ter sido se ela tivesse feito o que a mãe mandara, há cinco anos... não limpava o apartamento com frequência, e quando o fazia, era apenas superficialmente. A vida era amarga. O futuro, uma armadilha.
Candy era uma menina alegre, apesar de tudo. Tinha as professoras. Tinha as coleguinhas da escola, e as vizinhas de sua mãe, que penalizadas, às vezes chamavam a menina para passear. Levavam-na ao zoológico, às festinhas de aniversário, ao parque, à piscina pública. Em casa, Candy passou a nutrir pela mãe a mesma indiferença que ela lhe dedicava, mas amava Andy, que ela chamava de ‘meu papaizinho.’ Fazia tudo para vê-lo sorrir um pouco. Adorava quando ele chegava e, mostrando as mãos escondidas às costas, ofertava-lhe balinhas coloridas. Sempre que o pai cruzava a porta de entrada, Candy corria para ele.
Certa tarde, quando Patrícia estava ausente, Candy escutou o choro do pai no quarto de casal. Parou à porta, sem saber muito bem o que fazer, e ficou olhando-o. Então, teve uma ideia: correu até seu quarto e pegou seu ursinho de pelúcia, levando-o até o pai, exatamente como ele fazia quando ela chorava. Andy abraçou a menina. Fez com que ela se deitasse ao seu lado. De repente, ele começou a sentir algo estranho pela filha. Percebeu que era o mesmo que sentia no início do seu relacionamento com Patrícia, quando ela era jovem e bela. Seu amor de pai transformou-se em amor de homem.
Candy faria qualquer coisa para que o pai voltasse a sorrir, e por isso, fez exatamente o que ele lhe pediu: que ela fosse boazinha. E Candy passou a ser a menina mais boazinha do mundo para o pai, sempre que Patrícia estava ausente.
Mas um dia, Patrícia chegou em casa de repente, e percebeu o que andava acontecendo. Foram horas de uma briga terrível, durante a qual Andy se desculpava, dizendo que jamais faria qualquer coisa que machucasse a filha deles, e acusava Patrícia de não mais fazer sexo com ele.
“All my life you’re haunting me, I Love you so...” – Iggy Pop – Candy
A briga terminou com um apartamento totalmente quebrado, e uma overdose que matou Andy. Candy jamais se esqueceu da imagem de seu pai sendo levado, de olhos fechados, por dois homens de branco em uma maca. Também jamais esqueceria do olhar frio da mãe sobre ela, do outro lado da sala, enquanto disse: “A culpa é toda sua!”
Um dia, Patrícia aprontou Candy para o que ela chamou de ‘um passeio.’ Lavou-a cuidadosamente, penteou-lhe os cabelos, agora limpos e sedosos, colocou-lhe seu melhor vestido e saiu com ela de casa, tomando um ônibus. Ao mesmo tempo, colocou no bolso da menina uma carta endereçada à sua mãe. Patrícia, mais deprimida do que nunca, não conseguia mais tomar conta da filha; sua vida estava um caos. E estranhamente, sentia muito a falta de Andy.
Deixou-a à porta de sua antiga casa. Tocou a campainha e ficou do outro lado da rua, olhando, enquanto sua mãe – agora bem mais velha – abria o portão e recolhia a menina. Viu quando Candy, sempre obediente, entregou-lhe a carta. A avó leu. Depois, olhou para a menina de pé na sua frente, e pegando-a pela mão, levou-a para dentro de casa. Patrícia se foi, e nunca mais voltou.
A avó amou Candy desde o primeiro instante; viu na menina uma chance de consertar os erros que cometera com Patrícia. Matriculou-a na melhor escola do bairro, e ficou muito orgulhosa quando uma das mães lhe disse que Candy era tão bonita, que deveria participar de concursos de beleza.
Candy chorava à noite, mas gostava da avó e da linda casa onde morava. Sentia falta dos pais. Mas aos poucos, a apreensão por sua nova vida foi sendo substituída por novos amigos, nova escola, novas roupas e atividades variadas. A avó matriculou-a em aulas de balé, nas quais Candy se destacava; “tinha um talento nato!” - lhe diziam.
“Life is crazy.” – Iggy Pop – Candy
Candy sentia saudades do pai. Sonhava com ele à noite, mas jamais pensava em Patrícia. Não podia entender o motivo daquela briga que levara seu pai, e nem as acusações feitas pela mãe. Afinal, tinha apenas cinco anos de idade. Em sua cabeça, estava apenas tentando alegrar o pai.
Mas o tempo passa, e as crianças costumam guardar suas memórias em algum recôndito inacessível da mente que torna o dia-a-dia possível. Mesmo que no futuro, essas lembranças possam aflorar e causar muitos danos.
Finalmente, as amigas da avó a convenceram de inscrever Candy em concursos de beleza. Uma delas indicou-lhe um que pertencia à TV local, dizendo que seria um trampolim para o campeonato estadual de beleza infantil. Deu-lhe um cartão do organizador, um senhor chamado George Flores. A avó encantou-se pela sua simpatia desde o primeiro instante, e George ficou absolutamente maravilhado pela beleza de Candy. Pediu a avó que a trouxesse novamente dali a uma semana, a fim de uma entrevista mais detalhada. No dia marcado, Candy usava seus sapatos boneca azuis e um vestido branco rendado novinho em folha, e a avó a maquiara suavemente, destacando-lhe os lábios em forma de coração e colocando um pouco de sombra azul bem clara nas pálpebras, que faziam com que seus olhos derramassem ainda mais azul. Os cabelos foram cuidadosamente penteados, e cachinhos em molas caiam sobre seus ombros. Estava simplesmente um encanto!
Antes de ser chamada, a avó recomendou que Candy fosse simpática e bem-educada; a menina não entendeu o que a avó queria dizer com ‘bem-educada’, e perguntou-lhe: “Vovó, o que é ser bem-educada?” A avó, sorrindo, olhou-a com ternura, e segurando seu queixo delicadamente, explicou: “Basta ser uma menina boazinha.”
Bem, aquilo, ela sabia como fazer muito bem.
A avó deixou-a sozinha para a entrevista – recomendação do senhor George – para que a menina ficasse bem à vontade e fosse o mais natural possível. E Candy foi brilhante! George surpreendeu-se com seu talento para ser boazinha. Quando a avó retornou, ele comentou, entusiasmado, enquanto piscava para uma Candy sorridente, que aquela menina iria longe. E foi; Candy venceu o concurso da TV local, e sendo sempre muito boazinha, venceu o estadual.
Anos depois, tornou-se Rainha da beleza no baile da escola, e mais tarde, Miss Mundo. E todas as portas se abriram para ela, que tinha como agente dedicada, a avó.
Mas da mesma maneira que seu pai, que perdera seus sonhos em algum lugar sem jamais voltar a encontrá-los, Candy sentia que perdera uma parte de si ao longo daquele caminho. Uma parte que ela não sabia bem qual seria, mas algo muito importante. E faltava uma luz na menina de seus olhos, uma luz que jamais brilharia em sua vida e em sua carreira bem-sucedida.
“I’ve learned to fake it and Just smile alone.” – Iggy Pop - Candy