EXPRESSÃO DA MINHA ALMA
Tudo aqui é sobre mim.
Textos







Ausência 


(Do meu blog "Histórias")


anabailunecontos.blogspot.com

Quando ela dormia, ele passava horas olhando para suas pálpebras fechadas, tentando adivinhar com quem ela sonhava. Cabeça apoiada no antebraço, acendia a luz fraca do abajur e desfrutava do momento, o único, em que ele tinha certeza de que ela lhe pertencia totalmente.
 
As coisas não andavam bem naqueles últimos anos. A distância entre eles tornara-se um poço sem fundo, cuja borda alargava-se a cada dia, e ele não sabia o que fazer, como construir pontes que os mantivessem unidos. À noite, após o jantar, assistiam a um filme na sala de estar. Mãos dadas, corações distantes. Ele suspeitava que ela o traía - andava misteriosa e calada ultimamente. Ela nem pensava nada... apenas prestava atenção ao que se passava na tela colorida, totalmente ausente da presença dele.
 
Alguns laços, mesmo sendo fortes, não resistem a repetidos puxões, ela pensava. E ele já puxara demais. Agora, qualquer coisa que ele lhe fizesse, seria indiferente. Poderia até mesmo estar dormindo com outras mulheres, e ela não se importaria. 
 
Lembrava-se das vezes em que o seguira no passado, ardendo de ciúmes, e das provas que conseguira recolher da traição dele: Um bilhete meio-rasgado e amarrotado na lata de lixo do banheiro, a tinta da caneta borrada, onde se lia: "...noite muito agradável... vamos repetir... e um número de telefone ilegível com final 43." Lembrou-se de ter ficado horas tentando decifrar a mensagem borrada, e vasculhou o celular dele e o velho caderno de telefones procurando por um número com final 43, mas não encontrara nada. Ele jurou que tratava-se de um dos fornecedores que conhecera em sua última viagem de negócios de quem ficara amigo. Mas quando ela quis saber seu nome e de onde ele era, ele desconversou e mostrou-se ofendido pela falta de confiança dela.
 
Outra das 'provas' jamais completamente provada, fora um fio de cabelo loiro e longuíssimo no encosto do carro. Ao sentar-se, ela deparou com aquele fio brilhoso e claro contrastando com o forro preto do encosto, e puxou-o devagar, enquanto ele fingia estar mexendo no rádio. Ao perguntar a quem pertencia o fio, ele apenas fez cara de desentendido, dizendo que provavelmente, entrara com o vento pela janela aberta.
 
Houve também uma ocasião na qual alguém telefonara enquanto ele estava no banho, e ela atendeu seu celular; não disse nada, e uma voz feminina do outro lado da linha repetiu o nome dele três vezes antes de desligar. Ela olhou o número e ligou de volta, mas deu ocupado - e toda vez que ela tentava, mesmo de outros números, dava sinal de ocupado. Com certeza, o número fora desativado. Ele alegou que provavelmente era de alguém tentando vender alguma coisa.
 
Havia também os perfumes que soltavam-se dele quando ele passava; eram suaves, mas ela conhecia o cheiro dele, e sabia que aquele perfume alienígena não pertencia a ela ou a ele. Ao perguntar quem tinha aquele cheiro, ele encolhera os ombros e fingira lembrar-se de repente que encontrara uma velha amiga de faculdade que o cumprimentara com um abraço. Mas o cheiro às vezes reaparecia, muito suave, quase imperceptível.
 
Ela não era dada a escândalos e interrogatórios; quando sentia que ele lhe mentia, calava-se e fechava uma porta: distanciava-se, recolhendo-se em um mundinho pessoal do qual ele participava cada vez menos.
 
Ele tentava abraçá-la, mas ela alegava cansaço ou dor de cabeça. Sempre havia uma desculpa para que ele não a tocasse. Evitava os beijos dele, pois ficava imaginando a quem aquela boca poderia ter beijado, e onde... passou a sentir por ele uma repulsa física.
 
Ele de nada suspeitava. Perguntava a si mesmo onde errara. Em que momento do caminho ele deixara que ela se afastasse dele? Sempre fora capaz de manejar muito bem as suas escapadas, e tinha certeza absoluta de que ela não desconfiava de nada. Fora discreto, sem faltar-lhe com o respeito que ela merecia.
 
A verdade é que ele não conseguia imaginar aquela casa sem a presença dela. Todos os seus dias eram vividos por ela. As outras nada significavam. Ela era o significado de tudo o que ele fazia e desejava. Assim, passou a sofrer de pavor: um medo enorme de perdê-la. O medo crescia durante a noite, tomando proporções monstruosas na escuridão. Passou a não mais conseguir dormir, e precisou tomar remédios. Emagrecia a olhos vistos. Só ela não reparava, perdida que estava em seu próprio mundo indevassável onde ninguém poderia feri-la. 
 
Quando ele tentava falar-lhe de sua dor (mas jamais dos motivos daquela dor), ela ouvia compassivamente, e não respondia; apenas dizia que ele deveria fazer análise. 
 
Ela deslizava pela casa sem fazer muito barulho, tentando evitar entrar em algum cômodo se ele estivesse nele. Parada à porta, olhava antes de entrar; se o visse, não o fazia. Ele agonizava pela presença dela, a presença que ela retirava a cada dia um pouco mais.
 
Um dia, enquanto ela arrumava um álbum de fotografias, envolta em lembranças dos tempos em que ambos se conheciam, o telefone tocou. Era alguém de um hospital que dizia que seu marido sofrera um acidente, e que ele estava bem; mas infelizmente, sua filha não resistira aos ferimentos e falecera.
 
Filha?! 
 
Ela desligou o telefone em transe. "Ele estava bem." A voz fria da mulher ao telefone não parava de ecoar em sua cabeça.
 
Ela fez as malas devagar. Antes de sair, olhou para o apartamento vazio uma última vez.
 
Ela saiu para o ar fresco da avenida onde de repente as buzinas dos carros pareciam música, e os vários tons cinzentos dos prédios e muros pareciam em perfeita harmonia com o negro brilhante do asfalto. Ergueu o rosto para as gotas de chuva e sorriu. Ela estava livre. Ela estava vingada. 
 
 Ela estava bem.


 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 03/06/2015
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