E naquele ano, a seca foi feia. A pior de todos os tempos. Campos e plantações estendiam-se por quilômetros de vazio e plantas secas. Riachos desapareciam como se jamais tivessem existido. Até mesmo o mandacaru tornara-se escasso. Caminhões chegavam com pipas de água suja, que era disputada à socos e arranhões entre os moradores da vila. Às vezes, devido às brigas, muita água preciosa era derramada e prontamente absorvida pelas rachaduras do chão poeirento, desaparecendo nas entranhas da terra sedenta.
Lá à sombra da minha baia, eu via passarem os enterros. Um grupo de gente magra, suja e cabisbaixa seguia em fila atrás de um caixão de madeira tosca, e ninguém sabia qual deles seria o próximo. Certa vez, vi quando o cavalo que carregava o féretro tombou, derrubando o caixão cuja tampa se abriu, deixando rolar para fora o morto.
As pessoas estavam tão fracas que resolveram enterrá-los ali mesmo, à beira da estrada, e nem sequer marcaram o chão com uma cruz. Mais tarde, os que restavam daquela família também morreram.
As velhas rezavam seus terços, desperdiçando o líquido precioso de suas lágrimas. Acho que o Deus dos humanos estava ausente, lá longe, em algum outro lugar. Cavalos não tem deuses. Cavalos aceitam o destino que os humanos lhes impõe. Nascemos, crescemos, carregamos o peso da vida, morremos e somos esquecidos. Eu acho melhor assim. Não sofremos tanto pelo que é inútil. Não temos fé em nada, a não ser no capim que nos alimenta. Seguimos o curso da natureza. Não nos preocupa saber se existe um outro lugar para onde vão os cavalos quando morrem. Não ficamos a sofrer quando um de nós se vai, pois sabemos e aceitamos que este é o nosso destino. Não construímos templos para rezar e chorar por aquilo que não temos; vivemos o dia que se apresenta diante de nós, com alegria ou tristeza conforme for a ocasião. Cavalos não sentem rancor, não desejam ser perdoados pelos seus pecados porque cavalos simplesmente não tem pecados, e se tem, os desconhecem completamente. Cavalos não desejam ser salvos. Cavalos não desejam nada, muito menos, ser como outros cavalos.
Cavalos querem apenas ser cavalos, viver como cavalos e morrer como cavalos. Cavalos não acreditam em milagres. E depois de tanta desgraça e sofrimento, a pouca fé que tinha nascido em meu coração de cavalo, murchou.
Durante aquela seca, o pai tomou uma decisão muito difícil: teve que vender a fazenda. Apesar do pouco dinheiro que conseguiu com as terras, ficou feliz, pois com aquele dinheiro, conseguiu comprar nossos lugares no pau de arara para ir embora daquele lugar de morte. Fui eu quem levei Pedrinho, Corisco e o pai para comprar nossos lugares, e havia esperança nos seus olhos. Naquela noite, todos dormimos felizes, sabendo que na manhã seguinte, poderíamos ir embora. O pai guardara o resto do dinheiro para a viagem dentro de um saco de estopa e eu vi, pela janela, quando ele o colocou sobre a mesa de cabeceira. Quase todas as pessoas já tinham deixado a vila, e nós éramos quase os últimos.
O dono do caminhão era um sujeito mal encarado e quase tão cruel quanto Corisco. Eu assisti quando ele se negou a dar lugar no caminhão para uma senhorinha e seu neto, únicos sobreviventes de uma família, pois ela não tinha dinheiro suficiente para pagar a passagem. Mas o pai, sempre bondoso, cobriu o valor que faltava, e disse a ela que ficasse tranquila, pois dividiríamos com eles a comida. Corisco protestou, mas o pai mandou que ele se calasse.
Mas na manhã seguinte, enquanto a estrela D'alva ainda brilhava no céu, despertei com um grito agudo: era o pai. Ele dizia que tinha sido roubado. Vi-o correr para o quarto dos meninos, onde apenas Pedrinho dormia. Corisco tinha ido embora e carregado o restante do dinheiro com ele. O pai montou-me e corremos para a cidade, a tempo de ver o caminhão sumir na estrada...
Agora, não tínhamos mais nada: não havia comida, não havia água, dinheiro, caminhão, fazenda. Nem esperança. Apenas uma cidade deserta e seca, por onde o vento soprava poeira.