EXPRESSÃO DA MINHA ALMA
Tudo aqui é sobre mim.
Textos
Clarita andava pela rua como num transe pré-apocalíptico: cabelos desgrenhados, barra da camisa desleixadamente caindo para fora do cós da calça, rímel borrado, formando um círculo negro sob os olhos, dedos amarelados de nicotina - e ela nem fumava, antes daquele triste evento. É que Pablo, seu noivo de muito tempo (treze anos) a tinha deixado. Bem, dizem mesmo que o número treze dá azar... e ela seguia pelas ruas, meditando no poder daquele número fatídico, quando, ao virar a esquina, depara com um cartaz discreto colado em um poste:
 
"Trago a pessoa amada em sete dias. Desfaço mandingas de qualquer tipo, consigo emprego, vejo o passado e o futuro. Marcar hora com Madame Zora - tel: 2171-1313."
 
Clarita hesitou por um breve momento, olhando o anúncio colado ao poste. Espantou-se com a coincidência do número do telefone: 1313. O mesmo número de anos do noivado desfeito. Depois, pareceu cair em si, olhando para os lados disfarçadamente, preocupada com o ridículo de ser vista olhando tal anúncio. 
 
Tratou de ir andando. Mas não se esqueceu do telefone de Madame Zora - e a lembrança daquele nome místico, em volta de vários números treze, fizeram com que ela tivesse mais  uma escura noite em claro. Imaginava o rosto da vidente - alguém de longos e oleosos cabelos negros, unhas compridas pintadas de vermelho berrante, uma pinta no canto da boca, sobrancelhas grossas e arqueadas, muitas joias espalhadas pelos dedos, braços e pescoço, enfim, o retrato de uma cigana.
 
Tentou esquecer o assunto, mas alguns dias depois, sua amiga Vivi veio contar-lhe a novidade:
 
-Soube não? Pablo está para casar-se.
 
Sentiu o impacto da notícia em seu peito, como uma forte martelada.
 
-O que?! Como assim? Quando? E... e... com quem?!
 
-Com a secretária. Dizem que eram amantes há muito tempo. Só estou te contando porque quero o seu bem - Vivi disse, maliciosamente.
 
Clarita fingiu não se importar, mas quando Vivi desceu a ladeira e virou a esquina, sua fúria veio à tona: logo Janete, a secretária, aquela loura lambida (bem, não era tão lambida assim) que lhe oferecia café e revistas quando ela ia ao escritório de Pablo? Aquela fingida, que desmanchava-se em gentilezas enquanto a apunhalava pelas costas? Aquela periguete invejosa, que lhe tomava o homem sem dó nem piedade, enquanto dirigia-lhe um sorriso amarelo?
 
Clarita esqueceu-se de toda a culpa do ex-noivo, fazendo dele uma vítima inocente arrebatada pelas garras da loura macumbeira. Mas ela o teria de volta em até sete dias! Pegou o celular e discou o número de Madame Zora, marcando horário para aquela mesma tarde.
 
Arrumou-se muito bem - afinal, não queria parecer uma mulher frustrada e desesperada, e sim uma amante carinhosa e compreensiva que queria apenas salvar o noivo e resgatar seu verdadeiro amor. 
 
Ao chegar no local marcado - uma quitinete em Copacabana - surpreendeu-se ao ver que a porta abriu-se com um rangido assim que ela ergueu a mão para bater. Nem viu a câmera escondida na quina do batente. Ficou realmente impressionada ao entrar, e ver de pé no meio da sala decorada de roxo e preto, uma senhorinha baixinha e encurvada, com mais rugas do que sua falecida bisavó. Não era nada do que ela pensava!
 
Foi convidada a sentar-se. A velhinha - Madame Zora - sentou-se diante dela, pegando um maço de Tarô ensebado, acendendo um incenso nauseabundo e respirando profundamente algumas vezes, parecendo recitar uma prece estranha em alguma língua esquisita. Finalmente, depois daquele ritual, olhou para ela, perguntando:
 
-O que posso fazer por você, filha?
 
Clarita pareceu confusa, escolhendo bem as palavras a fim de causar uma boa impressão. Se a mulher fosse uma falsa vidente, não ia tirar partido de seu desespero.
 
-Bem, eu...
Madame Zora  interrompeu-a, semi-cerrando os olhinhos já pequenos:
 
-Já sei... é homem, não é?
-Como?
-Homem. Você está aqui por causa de um homem... eu o vejo... hum...
 
Clarita despejou-se imediatamente, esquecendo toda a sua dignidade:
 
-É isso mesmo! A senhora é boa, hein? 
 
E contou-lhe sua história triste. Falou de todas as vezes em que Pablo a havia traído , mas que nunca era nada sério, e que ele sempre voltava aos seus braços; contou-lhe também sobre uma ou duas vezes em que ele havia lhe batido- por culpa dela-, mas que pedira desculpas; contou-lhe do casamento várias vezes marcado e desmarcado, pois dias antes da data marcada, ele sempre caía doente (devia ser macumba daquelazinha). 
 
 Uma hora depois, Madame Zora estendia-lhe um lenço de papel, onde Clarita assoou o nariz. Feliz da vida, Clarita entregou-lhe duas notas de cem reais, deixando o recinto com o coração cheio de esperança.
 
Três dias se passaram. Nada. 
 
No quarto dia, enquanto olhava a vitrine de um grande magazine, Clarita viu sua rival escolhendo lençóis e toalhas para seu enxoval. Ficou furiosa ! Mais ainda, ao ver Pablo pagar tudo com o seu cartão de crédito - e lembrou-se que ainda não tinham separado as contas. No décimo dia, a fatura do cartão chegou, e ela, como titular, teve que pagar a conta exorbitante do enxoval do seu ex-noivo com a periguete. 
 
Alguns dias depois, Clarita voltou à casa de Madame Zora, dizendo que queria o seu dinheiro de volta.
 
-Sua velha trambiqueira! Você  promete trazer a pessoa amada de volta em sete dias! Quinze dias já se passaram, e nada!  O bandido ficou noivo de outra, e ainda fez o enxoval Às minhas custas! Quero o meu dinheiro de volta!
 
Madame Zora, olhando-a através de seus olhinhos semicerrados, deu um sorriso irônico, e respondeu:
 
-É verdade. Eu prometo trazer a pessoa amada em sete dias. Mas pelo que posso perceber, ele não é mais a sua pessoa amada.


 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 09/11/2016
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